Coluna do Henrique Varella – Como a cerveja salvou o mundo
Seres humanos como nós estão presentes na Terra há aproximadamente 100 mil anos e durante os primeiros 90 mil anos fomos caçadores e coletores, vivendo em cavernas. Tudo o que tínhamos que nos preocupar era com comida. No que parece, a vida não era tão difícil, passava-se cerca de duas horas por dia coletando grãos e caçando e bastante tempo socializando.
Até que, 9.000 A.C., aconteceu algo que mudou o mundo para sempre, chamada por historiadores de revolução agrícola. No oriente médio, caçadores/coletores começaram a trocar cavernas por casas e criaram a primeira civilização, a Mesopotâmia. Era o começo do mundo que conhecemos.
Não sabiam ainda os fermentos selvagens, mas ao converter os açúcares da cevada em gás carbônico e álcool criariam a roda, o arado, a matemática e o cálculo, as divisões de fronteiras entre campos, a contabilidade e, surpreendentemente, a escrita, além de uma explosão de tecnologias e uma série de outras coisas que se tornaram símbolos e cultura em nossas vidas.
Há especialistas que acreditam que foram os efeitos “intoxicantes” desse fenômeno natural e a sensação de “bem-estar” da cerveja que persuadiram as pessoas a continuarem a plantar cevada.
Por anos acreditaram que era pra fazer pão, mas agora existe uma nova teoria que mexeu com o mundo da ciência e que explica nossa grande motivação em construí-lo. A teoria da “cevada para cerveja”. A prova está nos resíduos de jarras antigas. Descobriu-se que esse resíduo é o que se chama de “pedra cervejeira”. E foram encontradas provas de cerveja 3.000 anos antes de qualquer um fazer pão.
E tudo não passou de completo acidente. Há 10.000 anos caçadores/coletores coletavam cevada selvagem como fonte de alimento e ela era colocada em algum recipiente de coleta. Certo dia, ao saírem para uma caçada, o recipiente ficou exposto ao tempo e à chuva e a cevada começou a crescer e produzir açúcar. Com mais chuvas e uma quantidade de água maior, a próxima etapa foi a fermentação. Alguns dias depois, os caçadores retornaram e ao olharem o vaso e ver uma mistura borbulhante alguns deles se aventuraram em provar. De repente a vida parecia muito mais “interessante”.
A razão pela invenção da escrita foi a necessidade de gravar a produção e a distribuição de commodities, como a cerveja. O comércio de cerveja criou a manutenção de símbolos em tabuleiros de barro, que evoluíram para a escrita. Na primeira língua escrita do mundo, chamada de cuniforme, e no dicionário antigo, chamado de “distas de palavras”, a palavra designada para cerveja está por toda parte. Uma das listas de palavras mais importantes têm mais de 160 palavras relacionadas à cerveja. Isso mostra o quão importante era a cerveja, essencial para a nutrição daquele povo.
Os egípcios viam a cerveja como um presente dos deuses. O mais poderoso dos deuses egípcios foi Rá, o criador da vida, do amor e da cerveja, nesse mundo e no próximo. Após a morte esperavam consumir cerveja em grandes quantidades. Inscrições em tumbas respondiam à seguinte pergunta: Quantas cervejas você precisa no próximo mundo? Alguns pediam até 1.000 jarros de cerveja para que pudessem aproveitar nas suas vidas seguintes.
Pesquisadores acreditam ter encontrado a resposta até mesmo para entender como as pirâmides, ícones maiores da vida após a morte, terem sido construídas. A porção diária, os salários do Egito antigo foram pagos em cerveja. Eles recebiam uma ficha que dizia a quantidade de jarras de cerveja que tinham direito, quase como se fosse um cartão de crédito.
Para os egípcios, cerveja era dinheiro. E, se nos tempos modernos, cerveja pode te comprar um favor, nos tempos antigos poderia comprar uma pirâmide. O pagamento diário para um trabalhador eram colossais quatro litros por dia. Na pirâmide de Guiza, foram gastos 231.414.717 galões de cerveja, ou seja, 875.904.704 litros de cerveja.
A razão era ser a cerveja a fonte vital de nutrição dos egípcios, um dos seus alimentos mais básicos. Não se tratava apenas de uma questão de ser bebida, até mesmo um estudante levantava de manhã e tomava uma jarra de cerveja. Na verdade era uma cerveja mais suave, com 3% de volume de álcool, mas denso em nutrientes e vitaminas que manteve os antigos fortes, saudáveis e absurdamente produtivos. Portanto, não teríamos as pirâmides se não fosse a cerveja.
A cerveja também foi usada para curar enfermidades de trabalhadores. Os restos de cerveja e os grãos eram queimados para produzir um fumegante anal para tratar doenças do intestino. Além do mais a cerveja foi pioneira na revolução da medicina 3.000 anos antes do seu tempo.
Recentemente, antropólogos que estudam ossos mumificados descobriram algo grandioso neles, foi detectado tetraciclina, um antibiótico moderno, não descoberto oficialmente até 1948. Então, os pesquisadores tiveram que explicar como essa substância entrou nos ossos e como quer que tenha sido só podia estar na dieta dos egípcios. E era tão predominante nesses ossos que tinha que ser algo consumido todos os dias.
Ao brassarem a cerveja de acordo com instruções da receita daquela época, encontraram a tetraciclina. Naquela época a vida era desagradável, bruta e curta. As chances de se viver até 6 anos de idade era de 50%. Guerras, pestes, assassinatos, rios imundos e esgotos tornavam a água completamente não-potável. Foi então que veio a descoberta, ao repetirem a receita constatou-se a tetraciclina e importância dela na manutenção da saúde e da vida na Europa medieval.
O processo de se fazer a cerveja ainda levou a uma transformação então milagrosa da água suja que tinham em cerveja potável. Pois ao ferverem inocentemente o líquido, afim de melhorar o sabor da bebida, eles acabariam por matar as bactérias e tornar a cerveja a bebida mais segura daquela época miserável.
Até o século XVI, cada indivíduo tomava cerca de 300 litros por ano, isso é seis vezes mais o que bebemos nos dias de hoje. Com essa demanda, a cerveja era ouro líquido e o grupo que saiu lucrando com ela eram os monges.
A igreja ficou rica com a cerveja. Eram os monges os mestres-cervejeiros e a cerveja era um presente de Deus. O povo ia naturalmente à missa porque era prometido que você ganharia uma cerveja logo após. A aliança sagrada entre cerveja e bíblia encheu igrejas por séculos.
Mas nem mesmo a igreja poderia monopolizar a cerveja para sempre. O negócio da cerveja atraiu uma nova geração, os empreendedores. Eles assumiram a produção e no processo transformaram a Europa. Para resumir, foi a cerveja, segundo esse lado da história, que desenvolveu o capitalismo.
A cerveja foi levada aos Estados Unidos (EUA) e foi responsável por sua história secreta. George Washington, Thomas Jefferson e Sam Adams eram todos cervejeiros, e juntos “fermentaram” uma nação. Juntamente com Benjamin Franklin, para quem cerveja era mais do que apenas uma bebida, era a evidência divina no universo. Em suas palavras, a “cerveja é a prova de que Deus nos ama e nos quer felizes.”
Com tais mensagens inspiradoras grandes nações foram formadas. Surgiram as tavernas, que eram centros de distribuição da comunicação daquela época, era o lugar em que as pessoas passavam informações. Tavernas conectaram os EUA e transformaram a colônia em uma nação. A cerveja inspirou a revolução americana. Em 16 de dezembro de 1773, a luta contra a libertação dos ingleses começou na Taverna do Dragão Verde em Boston.
As tavernas se tornaram centros onde as atividades revolucionárias eram discutidas, debatidas, conspiradas e planejadas. O papel da cerveja no nascimento dos EUA foi tão vital que é apropriado que o hino nacional foi emprestado de uma música de bebida, no século XVIII. A letra mudou, mas a melodia é a mesma. Na versão anterior era um teste de sobriedade, quem cantasse a música estava bom para mais uma cerveja.
Cerveja e ciência caminham sempre juntas. Tudo começou na década de 1850 com o cientista Louis Pasteur. Ele inventou a pasteurização. Tragicamente, as pessoas sempre ligam a isso ao leito, mas ele estava na verdade estudando a cerveja. Pasteur começou tentando responder uma pergunta de vacina. Por que cerveja às vezes estraga? Então ele fez uma descoberta surpreendente. A cerveja é viva!
Pasteur tinha descoberto a bactéria. Era a razão de a cerveja poder estragar. Mas a descoberta teve implicação enorme para toda humanidade. Porque depois disso ele se perguntou se a bactéria poderia fazer a cerveja doente, poderia fazer o mesmo às pessoas? E a resposta positiva é basicamente a base da teoria dos germes. E a teoria dos germes é a base da medicina moderna. Antes de termos a teoria dos germes, as pessoas achavam que as causas das doenças vinham dos pântanos ou maus espíritos.
A história da cerveja é longa e infelizmente eu preciso parar. Mas pensemos nas vacinas, na varíola e poliomielite e todas as implicações médicas depois dessas descobertas. Nos aparelhos de ares-condicionados e refrigeradores, e inclusive na indústria. Foi a cerveja quem colocou os EUA na soberania econômica. A produção de cerveja revolucionou a indústria americana, teria automatizado as linhas de produção pelo menos 10 anos antes que Henry Ford.
O próximo passo da cerveja é estar no espaço. Com o turismo espacial chegando, já está sendo preparada a primeira cerveja em órbita. Dos nômades ao espaço. Do começo ao fim. Obrigado, cerveja!
Vejam a história completa em:
Autor: Henrique Caldas Varella – Chef de cozinha no Restaurante Oswaldinha Gastronomia, formado pela Faculdade Estácio de Sá – BH